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A terra, uma mercadoria?
Escrito por: Michel Merlet, Tradução feita pelo NEAD (Brasil).
Fecha de redaccion:
Organizaciones: Institut de Recherche et d’Applications des Méthodes de Développement (IRAM), Réseau Agriculture Paysanne et Modernisation (APM), Fondation Charles Léopold Mayer pour le Progrès de l’Homme (FPH), Association pour contribuer à l’Amélioration de la Gouvernance de la Terre, de l’Eau et des Ressources naturelles (AGTER), Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, do Ministério do Desenvolvimento Agrário (NEAD)
Tipo de documento: Estudio / Trabajo de investigación
Merlet, Michel. Caderno de propostas. Políticas fundiárias e reformas agrárias. Versão em português. Dezembro de 2006. (Baixar o documento em português)
A. A terra permanece um objeto importante de conflitos e problemas
Podemos, freqüentemente, estabelecer uma ligação entre situação fundiária, bem estar econômico e governança: os países que conheceram um desenvolvimento econômico sustentável e que são os ais democráticos são também, muitas vezes, países caracterizados por uma divisão relativamente igualitária da estrutura fundiária. Como no passado, inúmeros conflitos no mundo têm, ainda hoje, uma ligação mais ou menos direta com a questão fundiária.
Simplificando, estes conflitos podem ser agrupados em três conjuntos interligados:
à uma distribuição muito desigual da terra, uma situação conduzindo á implementação das reformas agrárias.
à insegurança do acesso a terra ou aos recursos: não reconhecimento cos direitos comuns, falta de garantias para com os arrendatários que têm terra em locação, parceiros, precariedade dos direitos dos extrativistas de recursos naturais …
às reivindicações de grupos sociais ou de grupos étnicos para poder exercer seu poder sobre um território. Trata-se do típico caso das reivindicações territoriais dos povos indígenas, mas também de reivindicações ligadas à história e às vezes, com conotações religiosas ou culturais.
Muitos trabalhos trataram destas questões, mas os problemas, a reflexão e as propostas que resultam permanecem, em geral, muito dispersas. Abordando, em paralelo, situações de continentes diferentes e juntando temas tratados, freqüentemente, de formas independentes, nós apostamos que poderíamos elaborar juntos, propostas inovadoras suscetíveis de fazer avançar o debate e, sobretudo, melhorar a capacidade de proposta por parte das organizações camponesas e cidadãs, interessadas em contribuir para uma resolução mais rápida e duradoura de um certo número de conflitos relacionados à terra.
O objetivo deste caderno não é nada mais além de contribuir para este empreendimento.
B. A terra, uma mercadoria ?
« O que chamamos terra é um elemento da natureza que está inextricavelmente ligado às instituições do homem. O mais estranho de todos os empreendimentos dos nossos ancestrais, talvez foi o fato de a isolar e formar dela um mercado. »
Karl Polanyi, A grande transformação. 1944.
1. A terra, um bem diferente dos outros
A terra tem, pelo menos, duas especificidades:
1. Os direitos sobre a terra dizem respeito a um espaço, a um « território ». Não se pode nem destruir, nem deslocar um fragmento da crosta terrestre. A « propriedade » da terra não pode ser, então, assemelhada à propriedade de um objeto qualquer. De fato, os direitos sobre um território referem-se à relações, com os outros homens, suscetíveis de transitar por este espaço ou utilizar os recursos que ele contem.
2. A terra tem como particularidade, conter recursos naturais que não são fruto de um trabalho humano. Assim, por exemplo, a fertilidade natural não é a mesma em todo lugar; a cobertura vegetal « espontânea » pode também ser valorizada; o subsolo pode conter água, minérios, … . Isto é verdadeiro mesmo se uma outra parte destes recursos podem vir do resultado do trabalho acumulado pelas gerações de agricultores (a fertilidade não é só « natural »).
Os direitos sobre a terra referem-se às relações com os outros homens suscetíveis de transitar por este espaço ou usar os recursos que ele contem. A relação dos homens com a terra é, assim, na essência, uma relação social, uma relação entre os homens em torno a terra. A terra foi, por esta razão, uma das categorias principais usadas pela economia política desde seus primórdios: as diferentes teorias da renda da terra expressam esta especificidade1.
Entretanto, hoje, os direitos sobre a terra vendem-se e compram-se em muitos lugares ao redor do mundo. A terra tornou-se, neste sentido, uma mercadoria, mas que não pode ser assemelhada às mercadorias que foram produzidas para serem vendidas. É por isso que, desde 1944, Karl Polanyi falava em mercadoria fictícia. (ver quadro # 1)
2. A propriedade absoluta do solo, um mito que não é inocente
Na « Gestão da propriedade »2, Joseph Comby explica que a propriedade do solo nunca pode ser absoluta: uma idéia simples, mas cujas implicações são de uma importância extrema. Mesmo nas sociedades que inventaram o direito de propriedade « absoluto », este não se aplica ao solo. (Cf. Direito de caça na França, por exemplo, nas propriedades particulares ou numerosos limites impostos para a construção pelos regulamentos locais …)
O direito de propriedade, no que diz respeito à terra, é somente a propriedade de um ou de um conjunto de direitos e um proprietário só é, entre todos aqueles que têm direito, aquele que aparece com tendo mais direitos. Muitas opções são, então, possíveis, os direitos podem sobrepor-se, até contradizer-se. Isto ocorre na África, mas também na maior parte das sociedades « indígenas » e mesmo, de uma forma menos evidente, mas real, onde a propriedade individual domina (Europa, América Latina). Apesar dos « títulos » fundiários serem, muitas vezes, apresentados como o meio de fixar limites de áreas, trata-se mais da natureza dos direitos que eles significam para aqueles que os possuem do que a superfície do terreno que lhes dá um possível valor de troca.
Se a propriedades absoluta não existe deveríamos falar, então, em transformação de certos direitos sobre a terra em mercadorias e não da própria terra em mercadoria.
3. « a fábrica do diabo »3
Essas observações preliminares nos permitem entender melhor por que o mercado e o desenvolvimento capitalista não conseguem « resolver » sozinhos os problemas fundiários para o interesse do maior número possível de pessoas. Disto decorre uma série de conseqüências que, apesar de evidentes, são às vezes extremamente fundamentais.
Como a terra ou os direitos ligados a ela, muitos outros bens e, em particular, todos aqueles ligados ao ser vivo, também não são verdadeiras mercadorias, no sentido dado por Polanyi, a partir do qual os mercados poderiam se autoregular. Encontram-se fenômenos de renda em numerosos bens e os preços de numerosas mercadorias não somente fixados pelos mercados, mas evoluem, também, em função das lutas sociais. Os preços são, então, também a representação de relações de forças.
A tentação para tratar os fenômenos econômicos de forma independente da sociedade, consistindo por si só um sistema distinto ao qual o resto do social deveria ser submetido, somente pode ser, então, uma ilusão cujas conseqüências dramáticas e os perigos, existentes há cinqüenta anos, aprecem hoje sob formas novas e ainda, mais preocupantes por causa dos dogmas neoliberais e da globalização.
Esta loucura que Polanyi pensava obsoleta e que, segundo sua análise, tinha originado profundas desregulamentações econômicas e sociais na primeira metade do século XX, com a crise dos anos trinta e a chegada do fascismo, voltou ao primeiro plano e se estendeu no conjunto do planeta, fazendo pesar uma crescente ameaça sobre o futuro da humanidade4.
C. Administração dos direitos fundiários e arbitragem dos conflitos
Se as relações com a terra são antes de tudo relações sociais torna-se lógico que apareçam no decorrer das evoluções históricas, contradições e conflitos entre as pessoas e grupos sociais. Os conflitos são inevitáveis num sistema social, não sendo fixado uma vez por todas, mas, ao contrario, em constante transformação. Podem, até mesmo, serem saudáveis ou necessários, como mostra Etienne Le Roy, enfatizando o fato que « o que é sério, num conflito, … é o fato que não seja resolvido e que possa transformar-se num litígio e depois num drama ao ponto de tornar-se deletério »5.
Devemos, então, para não passar ao lado do essencial, refletir de forma a ligar, em permanência, a apreensão das « formas de organização social em nível local » com a « consideração da estrutura fundiária ». Portanto, é impossível retirar os sistemas de direitos fundiários das instâncias encarregadas de sua elaboração e daquelas encarregadas da arbitragem e da resolução dos conflitos.
Existem, em nível mundial, sistemas de administração de direitos fundiários muito diversificados, que estão ligados a procedimentos históricos específicos. Segundo o traços culturais, as épocas, as modalidades de heranças, os mecanismos de redistribuição periódicos da terra e das riquezas, a existência de direitos múltiplos, etc. … deram lugar a sistemas de administração e de gestão da terra mais ou menos centralizados e cujos fundamentos não são idênticos. Essas diferenças encontram-se, também, no coração dos países desenvolvidos e não correspondem, de maneira alguma, à uma demarcação entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas, ou entre modernidade e arcaísmo. Portanto, na Europa, existem vários sistemas de divulgação fundiária6, de registros da propriedade que podem coexistir sem que isso crie problemas insolúveis7.
Há, igualmente, sistemas de resolução dos conflitos muito diferentes, dependendo das sociedades. Podemos destacar quatro tipos de situações8. Nos dois primeiros casos, não existe um outro participante além das partes em conflito:
as partes podem entrar em acordo sem que as diferenças transformem-se em conflitos abertos, cada uma fazendo as devidas concessões;
elas podem enfrentar-se, a mais forte impondo sua lei à mais fraca.
Entre estes dois casos extremos, podemos achar duas outras situações:
a intervenção de um terceiro é necessária, este referindo-se às normas jurídicas socialmente aceitas, opera uma mediação permitindo concluir um acordo
a intervenção de um juiz que aplica de forma coercitiva o direito existente.
Como assinala E. Le Roy, « Enquanto que a cultura jurídica e judiciária ocidental e moderna só recorre à ordem imposta para resolver os conflitos assim que eles tomam uma certa importância, as concepções africanas privilegiavam solucionar os conflitos no seio do grupo que o viu nascer, cii biir y deuk, no centro da aldeia, como me dizia os Wolof do Senegal »9
Ao contrario do que é freqüentemente admitido, não existe uma única solução e padrão em nível mundial, para os sistemas de informação sobre os direitos10, nem no que diz respeito às instâncias de resolução dos conflitos.
1 A importância da renda da terra nos economistas clássicos (Ricardo, especialmente) retomada e modificada por Marx é bem conhecida. Lembremos em poucas palavras as definições essenciais dos dois conceitos chaves, a renda diferencial e a renda absoluta. A renda diferencial nasce da venda, num mesmo mercado e com um mesmo preço, de produções oriundas de áreas que, com a mesma superficie e com as mesmas quantidades de trabalho, não produzem as mesmas riquezas. Uma parte destas diferenças vem da fertilidade natural do solo, do clima e, uma outra parte, dos investimentos que foram incorporados ao meio, drenagem, irrigação, adubações, etc. Um proprietário pode, então, cobrar este agregado fazendo pagar uma renda ao produtor que a aceitará enquanto o lucro que ele realiza permanecer em conformidade ao que poderia obter mum outro lugar. A renda absoluta atende a uma lógica completamente diferente: um proprietário de terra pode, pelo fato de relações vantajosas para ele, exigir do seu arrendatário o pagamento de uma renda e isto, na teoría, até mesmo sobre as piores terras com renda diferencial nula. A economia neoclássica e a economia institucional têm abordagens distintas acerca da questão agrária. A ficha # 13 na segunda parte do caderno traz elementos complementares a este respeito [EUA. As terra agrícolas e o direito nos Estados Unidos da América na origem das posições do Consenso de Washington. (O. Delahaye)]
2 Em Quelles politiques foncières pour l’Afrique rurale? Réconcilier pratiques, légitimité et légalité. obra dirigida por Philippe Lavigne, Karthala, Cooperação francesa. 1998.
3 A expressão é de Polanyi em A Grande Transformação - as origens de nossa época. Ver quadro #1.
4 Ver a respeito, Susan George, Une courte histoire du néolibéralisme : vingt ans d’économie de l’élite et amorce de possibilité d’un changement structurel. Conference On Economic Sovereignty In A Globalising World Bangkok , 24 - 26 mars 1999
5 Etienne Le Roy, La sécurisation foncière en Afrique, Ed. Karthala, 1996. page 280.
6 NRT. Nota do Revisor Técnico: a expressão francesa « publicité foncière » será traduzida por « divulgação fundiária ».
7 Mencionemos, por exemplo o sistema do Livro fundiário germânico, no qual os direitos são verificados por um juiz antes de serem inscritos e o sistema francês qeu é, ao contrário, baseado na forte presunção de dereito que nasce da validação social sucessiva dos contratos entre indivíduos. Estes dois sistemas coexistem no território francês, o primeiro nos departamentos do leste e o segundo no resto do país. Comunicação oral de Joseph Comby e Jacques Gastaldi. Les systèmes d’information foncière. No Quelles politiques foncières pour l’Afrique rurale? Réconcilier pratiques, légitimité et légalité. obra dirigida por Philippe Lavigne, Karthala, Cooperação francesa. 1998.
8 Retomamos a classificação de N. Rouland, no seu Anthropologie juridique (citado por E. Le Roy, no La sécurisation foncière en Afrique, Ed. Karthala, 1996. page 209) que distingue assim, respectivamente a ordem aceita, a ordem contestada,a ordem negociada, e a ordem imposta.
9 E. Le Roy, op cit. pág 210.
10 Retomaremos adiante.
merlet_2002_11_caderno_a.pdf (1,2 MiB)