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Fondo Documental Dinámico
sobre la gobernanza de los recursos naturales en el mundo

Caderno de propostas. Políticas fundiárias e reformas agrárias. Parte I. Primeira Questão: como tornar seguros os direitos dos usuários ? (2 de 2) (em português)

Construir mecanismos locais de gestão permitindo evoluções controladas pelas populações rurais. Um questionamento conceitual doravante incontornável

Fuentes documentales

Merlet, Michel. Caderno de propostas. Políticas fundiárias e reformas agrárias. Versão em português. Dezembro de 2006. (Baixar o documento em português)

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3. Construir mecanismos locais de gestão permitindo evoluções controladas pelas populações rurais

O registro dos direitos não é suficiente em si. Os direitos evoluem constantemente pelas vendas, cessões de arrendamento, heranças, etc. Sua natureza mesma pode transformar-se, aos poucos, com a evolução das relações sociais.

  • Os direitos fundiários devem, então, poder ser constantemente atualizados, se não as operações de implantação de cadastros realizadas com custos importantes devem ser repetidas no fim de alguns anos.

  • As evoluções sociais, mais lentas, devem também poder ser traduzidas por adaptações dos conceitos jurídicos e dos modos de validação dos direitos. As leis, freqüentemente, adotam termos oriundos de realidades distintas, fazendo referência a espaços geográficos ou a tempos diferentes daqueles aos quais elas se aplicam, o que gera efeitos perversos que podem ser importantes.

Os sistemas habituais de cadastro e de registo da propriedade podem funcionar suficientemente bem para as propriedades com tamanho bastante grande e os proprietários bem de vida. Os gastos com topógrafos, cartórios e registros das cessões, heranças, etc., não representam uma porcentagem elevada demais em relação ao valor do bem. Não é a mesma coisa no que diz respeito à pequenas áreas dos camponeses pobres e daqueles vivendo em localidades muito afastadas dos centros administrativos: nos dois casos, os custos de transação tornam-se altos demais e os usuários não têm outra escolha senão permanecer ou voltar a uma gestão informal que não é ou é só parcialmente reconhecida legalmente. Corrigir esta situação, através de um sistema descentralizado, implica custos muito altos. Se acrescentarmos a grande diversidade das situações locais, podemos ver que a implantação de mecanismos descentralizados de atualização dos direitos revela-se incontornável. Porém, muito poucos esforços e meios financeiros e humanos, nacionais e da cooperação internacional, são hoje destinados a este fim.

Sem dúvida, a explicação é que o tipo de trabalho que isso exige é muito mais complexo do que a execução de um projeto de desenvolvimento comum. A organização de mecanismos descentralizados de administração dos direitos não pode limitar-se a operações mecânicas de registro e exige, muitas vezes, uma capacidade de gestão política dos direitos. Esta pressupõe uma estruturação adequada da sociedade em nível local ou, em outras palavras, a existência de um capital social suficiente para que possam funcionar mecanismos de resolução dos conflitos, de mediação e arbitragem, sem ter que apelar sistematicamente para os tribunais comuns. Estes não permitem, em geral, resolver os conflitos pois o acesso das diferentes camadas da população à informação jurídica e aos procedimentos judiciários é, freqüentemente, muito desigual: os mais pobres não podem contar com elas para defender seus direitos.

A gestão dos direitos passa freqüentemente por regras não escritas, conhecidas e aceitas por todos no âmbito local e podem ser muito diferentes de um lugar para outro. A estas regras locais somam-se princípios comuns de direito tendo uma base de aplicação mais ampla, que se reconhece como direito costumeiro. Em muitos países em desenvolvimento, o direito chamado « moderno », muitas vezes importado pelos colonos, constitui um conjunto distinto cujos princípios entram freqüentemente em contradição com o direito costumeiro. Costume e direito moderno evoluem sem parar, com ritmos variados.

Poucas políticas nacionais procuraram, explicitamente, reforçar a capacidade de governança local e de gestão dos bens comuns. O exemplo histórico do México aparece como uma exceção a este respeito, com a forma de gestão original oriunda da revolução camponesa do início do século XX, o ejido, implantado para a gestão das terras da reforma agrária (Ver quadro # 11). Este sistema recria, como nas comunidades indígenas, um mecanismo explícito de gestão dos bens comuns{>(45) 45].

A forte intervenção do Estado no quadro político particular do México, com o Partido Revolucionário Institucional, constitui a outra característica deste esquema original.

Quadro # 11. Uma gestão original da estrutura fundiária no México: o ejido. Origens e funcionamento46

A questão agrária está no centro da revolução mexicana contra a ditadura de Porfirio Diaz (do início do século XX). As desigualdades de acesso à terra, herdadas do passado, tinham crescido bastante e gigantescos latifúndios tinham-se constituído a partir das terras comunitárias. Por volta de 1905, 0,2% dos proprietários possuem 87% das terras! As reivindicações das forças dirigidas por Emiliano Zapata e outros movimentos camponeses dizem respeito à restituição das terras usurpadas nos vilarejos das populações mestiças e das comunidades de índios e sobre a limitação do tamanho da propriedade fundiária (lei agrária zapatista de 1915)

A reforma agrária mexicana, concebida e realizada pelos camponeses, instala um dispositivo de gestão da terra no qual articulam-se os direitos individuais dos produtores com a gestão coletiva do território, o ejido. Se este se inscreve na continuidade, em relação aos modos de gestão em vigor nas comunidades indígenas, é muito original se comparado com as modalidades que serão aplicadas no momento das reformas agrarias ulteriores. A Constituição de 1917 (artigo 27) não somente reconhece a propriedade coletiva, como também estabelece que os vilarejos não dispondo de terras devem receber áreas a partir da desapropriação das grandes fazendas. Nos territorios controlados pelos índios, o regime de comunidades indígenas é reconhecido e legalizado. Nos outros casos, um novo regime fundiário é implantado, o ejido{>(47) 47]. No governo de Lazaro Cardenas, o aprofundamento da reforma agrária fortalece seu papel. Entre 1930 e 1940, a metade das terras cultivadas torna-se « ejidales », dando um pouco mais de 50% da produção nacional.

O regime fundiário do ejido caracteriza-se pelo fato que os membros do ejido têm um direito de uso sobre as áreas que eles trabalham a título individual48. Podem cedê-lo, em herança, a seus descendentes e o perder se abandonarem suas área durante mais de dois anos consecutivos. As áreas e empreendimentos comuns do ejido alimentam um fundo comum que não podia, a princípio, ser distribuído individualmente, nem usado a fins políticos ou religiosos. A maior instâncias de decisão do ejido é a assembléia geral dos membros de direito. Ela elege um comisariado ejidal, que está encarregado de administrar os bens comuns e um conselho de controle. O comisariado ejidal tem também um poder de resolução dos conflitos internos relacionados à terra e está habilitado a sancionar os casos de não aplicação das regras.

A industrialização do México, a partir dos anos 40, funda-se em grande parte na ampliação do mercado interno que resulta da melhora do nível de vida dos camponeses tendo beneficiado desta divisão das terras.

Mas, o modelo do ejido não estava isento de defeitos: ingerência importante por parte dos organismos de tutelas do Estado, que dava ao ejido um caráter híbrido de órgão de gestão local e de dependência ao Estado, diferenciação interna freqüentemente grande no seio do ejido, facilitada pela organização de sociedades de crédito que beneficiava somente uma minoria de « ejidatarios », aparecimento de caciques « ejidais ». Por essas diferentes razões, as instâncias de controle social não puderam evoluir para impedir um certo imobilismo em matéria de acesso à terra, contornado onde existia um forte potencial econômico e por combinações fora da lei. O parcelamento dos estabelecimentos através de divisões tornou-se muito importante. Em 1988, 49% das parcelas ejidales tinham menos de 5 ha.

A modificação em 1992 do artigo 27 da constituição que estabelecia o regime do ejido e servia de base à reforma agrária suscitou um vivo debate nacional. Ela permite o reconhecimento e a inscrição dos direitos individuais no seio dos ejidos, com também sua transformação em propriedades privadas sob certas condições. O processo correspondente conhecido com o nome de PROCEDE, (programa de certificação dos direitos ejidais) reconhece, numa ampla medida, evoluções iniciadas bem antes da lei de 1992 em muitos ejidos, com uma transformação dos direitos fundiários em mercadorias em margem da lei, sem que os mecanismos de controle social pudessem evoluir em conseqüência. O PROCEDE não representa o desaparecimento de qualquer gestão comum da terra, mas visa uma modernização dos mecanismos de regulação. Sua aplicação teve impactos muito diferentes segundo as regiões e não provocou, em geral, uma privatização maciça das terras.

O desafio mais importante é, certamente, fazer evoluir o sistema do ejido sem voltar a um sistema de propriedade absoluta que acabaria com seus aportes originais em termos de gestão dos bens comuns.

Algumas instituições de cooperação internacional ajudam, hoje, experiências visando reconstituir ou criar uma capacidade local de gestão dos recursos naturais. A ficha # 1 da segunda parte deste caderno, sobre a experiência do Mayo-Kebbi, no Chade, constitui uma ilustração para a África subsaariana49.

Mas, é também a partir de uma necessidade semelhante, num contexto completamente diferente, que nasce a experiência da constituição da Sociedade Civil das Terras do Larzac, na França, que é objeto da ficha # 1750.

Existe hoje um certo número de ferramentas que permitem dirigir-se no sentido de um reforço das capacidades de gestão dos recursos fundiários. É o caso da cartografia participativa da terra e dos recursos, que permite explicar em termos compreensíveis para atores externos ao meio local, iniciativas espaciais complexas percebidas, até então, somente de uma forma implícita por parte dos únicos atores locais.

A cartografia participativa é, portanto, uma ferramenta de comunicação, mas também um instrumento capaz de aumentar a transparência e permitir uma melhor difusão dos direitos num contexto em evolução rápida. Ela implica ao acesso, por parte dos atores locais, a meios modernos de representação cartográfica e de « tele-percepção »{>(51) 51]. A possibilidade de realizar ações desse tipo foi provada com um certo número de experiências pilotas52.

Algumas ferramentas complementares, não diretamente ligadas à questão agrária, permitem melhorar o capital social. Pensamos, em particular, aos diversos mecanismos de aprendizado de gestão dos bens comuns53, e de uma forma mais ampla a todos os meios para fortalecer a estruturação do meio e a capacidade de controle de populações sobre seu próprio destino (empowerment), baseados na inovação social, na experimentação e no aprendizado pela ação.

4. Um questionamento conceitual doravante incontornável

Evoca-se, muitas vezes, a « Tragédia do comunitário » para justificar a necessidade de uma apropriação privada dos recursos, fazendo uma referência ao artigo publicado em 1968 por G. Hardin: segundo este autor, qualquer recurso limitado cuja posse é coletiva tenda a ser administrada de uma forma não sustentável até o esgotamento de seus recursos, cada um tendo interesse em tirar o máximo de proveito antes dos demais. Porém, o problema não é a existência em si de bens comuns, mas a ausência de controle e de mecanismos a fim de garantir a gestão conforme o interesse geral.

Essa reflexão sobre a gestão dos bens comuns deve ser conduzida em escalas diferentes: em nível local, regional, nacional. Mas, hoje, é evidente que ela deve também se estender na escala de blocos regionais multinacionais e as vezes, planetários. Nesta perspetiva, a questão fundiária constitui uma das grandes questões mundiais, numerosos recursos do planeta são percebidos, cada vez mais, como sendo um bem comum e « patrimônio » da humanidade.

A questão da gestão sustentável dos recursos naturais ultrapassa o quadro estrito da reflexão sobre a terra, permanecendo indissociável desta. Tanto os debates sobres a gestão concertada dos recursos nos países do sul com as populações rurais (diante da impossibilidade em limitar-se a uma política de conservação fundada em reservas e parques nacionais dos quais os homens são excluídos), quanto àqueles sobre a multifuncionalidade da agricultura nos países europeus, atestam esta procura por novas modalidades e regras que se expressa, entre outros, pelo conceito de gestão patrimonial .

Uma melhor garantia fundiária passa pela criação de novas capacidades sociais, uma melhor estruturação das sociedades rurais e a elaboração de instituições renovadas. Não pode ser alcançada somente com o aperfeiçoamento técnico do registro dos direitos ou dos cadastros. Tomando por base as experiências que nós evocamos e as evoluções atuais, trata-se de um questionamento fundamental dos valores e conceitos dominantes, hoje, em matéria de propriedade que nós precisamos para poder progredir e ultrapassar os obstáculos criados pela inadequação às situações atuais. Como nós vimos, isso implica abandonar a ilusão da propriedade absoluta e reconhecer na terra a existência, em quaisquer circunstâncias, de uma parte de bem comum que é necessária administrar com instâncias apropriadas.

Esta evolução conceitual está longe de ser reconhecida sem contestação, como provam os violentos debates e as lutas em nível mundial entre sociedades civis, empresas transnacionais, governos e instituições internacionais. Importantes interesses privados continuarão a opor-se violentamente durante, ainda, muito tempo e ela não poderá construir-se sem a existência de organizações camponesas poderosas, representativas e democráticas. Portanto, o debate a respeito dos direitos de propriedade sobre o solo integra-se na procura de uma verdadeira governança mundial.

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45 O regime fundiário das terras das comunidades indígenas caracteriza-se, em geral, no México, por uma gestão fundiária coletiva com o reconhecimento de direitos de usufruto individual para os membros da comunidade, sobre a parte das terras que eles cultivam. Estes direitos são, freqüentemente, tranmissíveis aos filhos e podem ser cedidos ou vendidos a um outro membro da comunidade. A possibilidade para cada “comunero” (cada pessoa detentor de un direito, em geral os chefes de família) para manter seus direitos A garantia dos direitos implica a aceitação de um certo número de deveres pessoais: dar um número de dias de trabalho á comunidade (tequio) e ocupar funções de interesse coletivo que a Assembléia lhe confia periodicamente (cargos). A comunidade é dirigida por uma Assembléia soberana dos « Comuneros » ao lado da qual encontramos instâncias consultivas importantes (Conselho dos anciões, ou de pessoas reconhecidas). Existe uma estrutura executiva, o « Comisariado de Bienes Comunales », encarregado, como sue nome indica, da gestão dos bens comuns e das instâncias de controle.

46 A partir de La transformación agraria. Origen, evoluciones, retos. Ed Sec de Reforma Agraria. 1997. Ver também Laura Randall (Coord.), Reformando la Reforma Agraria Mexicana. UAM. 1999.

47 Se o nome origina-se na historia agrária espanhola e colonial, ele designa uma situação nova e original de gestão da terra.

48 Só para uma pequena minoria de ejidos, o trabalho foi totalmente coletivo.

49 Ver a ficha # 1 da parte 2. Bernard Bonnet. Gestão concertada dos espaços e dos recursos comuns no Mayo-Kebbi. Tchad. IRAM - GTZ.

50 Ver a ficha # 17 da parte 2. José Bové. A Sociedade Civil das Terras do Larzac, uma abordagem inovadora e original da gestão fundiária dos territórios rurais. França.

51 É bom não se limitar às ferramentas muitas vezes infantis dos diagnósticos rurais participativos, um método de conhecimento rápido, que estava na moda na década passada, transposto abusivamente com vista à participação dos atores e usado mecanicamente por inúmeros projetos, nos países em desenvolvimento.

52 Ver por exemplo as experiências de cartografia realizadas junto a populações mestiças e indígenas no seio do Projeto Fronteiras Agrícolas (UE) na América Central, sob a direção de Mihcel Laforge e Pable Torrealba.

53 Cf., por exemplo, a experiência do IRAM no Mali, com o Fundo de Investimento Local de Sikasso, cujos objetivos eram permitir uma melhor gestão das subvenções, limitando ao máximo seus efeitos negativos e perversos e aumentando o capital social, melhorando a estruturação do meio rural, aumentando o domínio dos rurais sobre seu meio ambiente e sua capacidades de gestão coletiva de problemas comuns, em nível de seu território. Os três princípios de base da metodologia são: 1) reconhecer a existência de dinâmicas locais e atuar de forma a permitir a grupos sociais marginalizados a construção de suas próprias instituições, seu próprio futuro. 2) dar o poder de decisão aos produtores o outros atores locais, colocando-os na posição de proprietários dos recursos e de mestres de obra dos projetos. 3) permitir aos atores a formação pelo meio das ações, com direito a errar. Isso implica numa diferenciação entre funções técnicas e financeiras; apoios específicos aos empreendedores e aos prestadores de serviços, mas também uma progressividade nos montantes liberados, a implantação de contra poderes e de um controle social cruzado sistemático, para evitar o fortalecimento dos caciques e a corrupção, a procura do caráter sustentável dos investimentos e uma duração suficiente de intervenção para que possam criar-se ou recriar-se os mecanismos e as instâncias coletivas de tomada de decisão sobre os recursos comuns.