français | español | english
Online Knowledge Base
Natural Resource Governance around the World

Defender as agriculturas familiares: quais, por quê ?

Resultados dos trabalhos e do seminário organizado pela Comissão Agricultura e Alimentação de Coordination SUD, em 11 de dezembro de 2007

Uma argumentação necessária para revalorizar as agriculturas familiares

A agricultura familiar, e mais precisamente, as agriculturas familiares – levando em conta sua diversidade – sofrem geralmente de uma imagem negativa aos olhos dos políticos com poder de decisão dos países em desenvolvimento e dos doadores dos países desenvolvidos, associada, especialmente, ao arcaísmo e baixa eficiência econômica. A tendência nos trinta últimos anos foi o abandono das agriculturas familiares pela ajuda pública para o desenvolvimento, em vários países em desenvolvimento assim como nos discursos das instituições internacionais 1. De fato, observase na maior parte destes países uma desigualdade no acesso aos recursos públicos entre as agriculturas familiares e outras formas de agriculturas do tipo capitalista, e mais globalmente entre meio rural e urbano.

O essencial do orçamento agrícola, que já é geralmente fraco em comparação com outras linhas orçamentárias (educação, saúde, etc.) é destinado a sustentar agriculturas do tipo capitalista, que remetem de forma sistemática a grandes propriedades necessitando de capitais e de mão de obra assalariada relativamente importantes. Em matéria de acesso ao crédito ou à terra, por exemplo, as decisões políticas tendem a privilegiar de maneira sistemática estas últimas.

Porém, os agricultores familiares constituem de longe a maioria dos agricultores no mundo. Eles contribuem, além disso, na criação de riqueza, dos empregos e na garantia de várias funções, da produção de alimentos ao ordenamento do território. Esta falta de reconhecimento e de apoio aos agricultores familiares põe em questão o futuro de milhões de agricultores, mas também dos modos de agricultura que devem ser apoiadas para construir um desenvolvimento sustentável.

Uma retomada da questão agrícola que não é, necessariamente, favorável às agriculturas familiares

Há pouco tempo que o contexto parece de novo, particularmente, favorável ao desenvolvimento da agricultura. Fala-se do retorno da questão agrícola com a saída do Relatório do Banco Mundial 2008 consagrado à agricultura; a disparada dos preços dos produtos alimentícios nos mercados mundiais remete também na atualidade o desenvolvimento de produções locais. Mas de qual agricultura se trata? É preciso continuar a abandonar as agriculturas familiares em prol de outras formas de agriculturas ou reverter essa tendência?

Analisando o Relatório do Banco Mundial, não consta nada sobre o modo de agricultura familiar. Se escutarmos o presidente do Senegal, Wade, a agricultura “moderna” é necessariamente sinônimo de grandes propriedades, de exportação e de capitais importantes, e a orientação dada à agricultura senegalesa vai nesta direção. Segundo o governo, o crescimento acelerado exige identificar no setor agrícola, entre outros, os ramos capazes de criar uma dinâmica. O governo aposta no agro-negócio, e no artesanato à custa da agricultura familiar, considerada como incapaz de intensificar sua produção. No Brasil, o governo leva adiante uma agricultura em duas velocidades: uma agricultura familiar de “pequenos produtores” como instrumento de luta contra a grande pobreza, mas ele sustenta o desenvolvimento de uma agricultura industrial como instrumento de desenvolvimento econômico.

Ao inverso, organizações camponesas, como o ROPPA na África do Oeste, defendem a idéia que as propriedades familiares têm capacidades de enfrentar os desafios do futuro e que é preciso apostar bem mais do que esta sendo feito hoje nestas agriculturas para chegar a um desenvolvimento sustentável.

As vantagens das propriedades familiares para enfrentar os desafios futuros conforme o ROPPA

Para a coletividade local, nacional e mundial, a propriedade familiar acumula vantagens. Para responder aos grandes desafios contemporâneos que concernem à agricultura – a produção alimentar, a gestão dos recursos naturais, a criação de empregos, o ordenamento do território… –, a propriedade familiar apresenta características favoráveis: perenidade da unidade (…), flexibilidade das remunerações, diversidade das atividades… (…). A história agrária, especialmente a da agricultura européia, mostra, além disso, que estas propriedades podem, se o ambiente econômico assim permitir, se modernizar e se “capitalizar” rapidamente mesmo permanecendo familiares.

Fonte: Política agrícola, agricultura camponesa e propriedade familiar, Nota em atenção do Presidente do Comitê Executivo do ROPPA.

Além disso, as agriculturas familiares nem sempre foram abandonadas. Na primeira metade do século 20, o modelo familiar, modelo dominante até então, não é verdadeiramente questionado e seu papel fundamental é reconhecido (Servolin, 1989). Para a América Latina, Merlet e Jamart (2007) notam que a maior parte das análises globais sobre as respectivas vantagens econômicas da produção agrícola das pequenas estruturas em relação à das grandes unidades, data de mais de vinte anos. As monografias regionais, entretanto, são abundantes. Elas permitem verificar que em condições iguais de acesso aos recursos e aos mercados, a produção familiar é largamente mais eficiente que a grande produção com assalariados. Os anos 80 viram uma prioridade nas políticas públicas para o modelo agrícola produtivista voltado para o mercado. Em um contexto de mundialização e de abertura das economias, a capacidade das agriculturas familiares é questionada, confrontando-a em particular a outros modelos agrícolas.

Um imperativo de investimento nas agriculturas familiares

Diante desta constatação, os membros da Comissão Agricultura e Alimentação de Coordination SUD, que se posicionam em suas atividades no quotidiano ao lado e a favor das agriculturas familiares, desejaram apoiar este posicionamento. Consideramos que, por um lado, o abandono das agriculturas familiares é muito ligado a uma evolução dos paradigmas em direção a prioridade do mercado, e, por outro, que as agriculturas familiares têm o potencial para responder aos desafios de um desenvolvimento sustentável, se condições mínimas são preenchidas; acesso aos recursos, ao capital, ao mercado, à assistência técnica, aos resultados de uma pesquisa adaptada, etc.

O desafio é, então, defender as agriculturas familiares diante das críticas e do abandono das quais elas são vítimas, acabar com os preconceitos e demonstrar seus trunfos e potenciais para o futuro. Não se trata de fazer oposição às outras formas de agricultura por princípio, especialmente do tipo capitalista, ou em um esquema simplista de dicotomia opondo agricultura familiar à agricultura capitalista. Uma coexistência entre diferentes tipos de agricultura é, à priori, possível, e até mesmo desejável. Mas no estado atual das coisas, na maior parte dos países do Sul, como nas práticas dos financiadores, observa-se uma forma de concorrência entre modelos da agricultura familiar e capitalista. Esta concorrência é particularmente visível no acesso aos recursos públicos, e é hoje desfavorável às agriculturas familiares.

Entretanto, não se trata de cair no outro extremo e exagerar apresentando um quadro “idílico” das agriculturas familiares. Estas encontram várias dificuldades que não devem ser apagadas, mas, ao contrário, enfatizadas. A tomada em consideração e a análise destas dificuldades permitirão definir, num segundo momento, como enfrentá-las numa perspectiva de promoção das agriculturas familiares.

O objetivo deste documento é construir uma argumentação a favor das agriculturas familiares a fim de que não sejam mais o primo pobre das políticas públicas agrícolas. As ações de advocacy visam incitar os políticos que tomam decisões a transformar a tendência atual de abandono das agriculturas familiares. A defesa das agriculturas familiares se entende como a defesa de um modo familiar de agricultura para toda a sociedade e para atingir objetivos de desenvolvimento sustentável, não como a defesa de interesses corporativistas de alguns. Sem negligenciar os limites e desenhando uma tabela mais objetiva e contrastada possível, este documento tenta explicar porque o investimento nas agriculturas familiares nos parece ser a via necessária de um desenvolvimento sustentável, e assim, responder aos seus críticos.

Uma metodologia baseada em exemplos de campo com valor demonstrativo

A argumentação foi construída ilustrando as capacidades dos agricultores familiares de levantar o desafio de um desenvolvimento sustentável seguindo certo número de critérios (“capacidade de…”).

  • Capacidade de manter ou criar empregos e manter jovens rurais em seu território, e até mesmo, de absorver jovens que chegam ao mercado de trabalho.

  • Capacidade de administrar o risco e de se adaptar. Capacidade de lutar contra a pobreza e as desigualdades.

  • Capacidade de produzir suficientemente para garantir a soberania local e abastecer os mercados locais.

  • Capacidade de contribuir no crescimento econômico, nas exportações e entradas de divisas.

  • Capacidade de ser competitivo no quadro da mundialização, tanto para os mercados de exportação quanto para resistir à concorrência das importações.

  • Capacidade de preservar os recursos naturais e a biodiversidade, de preservar o meio ambiente.

  • Capacidade de manter especificidades culturais nos territórios rurais, consideradas hoje como patrimônios.

  • Capacidade de contribuir em processos de desenvolvimento local e na manutenção de territórios rurais “vivos” e cuidados.

As informações foram coletadas através da literatura e dos exemplos tirados de aprendizagens e análises de campo para informar da melhor forma estes diferentes critérios. Quando as informações estavam disponíveis, e para melhor “defendê-las”, as capacidades das agriculturas familiares puderam ser comparadas com as das agriculturas do tipo industrial, mostrando também assim os limites das mesmas.

Mais que pretender realizar uma demonstração técnico-econômica das vantagens das agriculturas familiares, a escolha metodológica foi multiplicar os exemplos concretos, se possível com dados quantitativos, para ilustrar cada um dos pontos de nossa argumentação. Os exemplos foram escolhidos pelo mundo afora por sua característica representativa e demonstrativa.

Várias contribuições das organizações que fazem parte da Comissão Agricultura e Alimentação de Coordination SUD e de seus parceiros foram assim utilizadas para construir a argumentação.

  • Estudo de caso no Brasil sobre a cultura da mandioca e a criação de caprinos e ovinos no Rio Grande do Norte por Joaquim Diniz (AACC, ONG brasileira), Stefano Linguanotto e Emmanuel Bayle (AVSF).

  • Estudo de caso sobre as conseqüências sócio-econômicas da extensão das plantações de palmeiras de óleo na Indonésia, pela CCFD.

  • Estudo de caso sobre os impactos da cadeia de produção da cultura da soja na província do Chaco na Argentina, por Susana Gross (parceira CCFD).

  • Estudo de caso sobre as características da agricultura familiar na Cordilheira de Ayopaya (Bolívia), por Margot Jobbé-Duval (parceira AVSF).

  • Ensaio sobre a situação e o futuro das agriculturas familiares na América Latina, por Michel Merlet e Clara Jamart (AGTER).

  • Estudos da literatura sobre as agriculturas familiares, dos “clássicos” aos de hoje quais são os argumentos prós e contras as agriculturas familiares, por Sandra Yama, Christian Castellanet, Arlène Alpha (GRET).

Os limites do exercício

As referências que têm como objetivo apresentar de forma quantificada as vantagens das agriculturas familiares e/ou em realizar comparações entre diferentes modos de agricultura são raros. As análises geralmente são qualitativas e do tipo monografia. Por falta de meios, os estudos de caso realizados não puderam proporcionar uma produção de dados de primeira mão e se apoiaram na informação existente, no conhecimento de campo e em testemunhos.

As referências bibliográficas apresentando os limites ou as fraquezas das agriculturas familiares para construir um desenvolvimento sustentável também não são muitas e baseadas em dados. Assim é difícil encontrar argumentos mostrando as vantagens das agriculturas do tipo capitalista sobre estes das agriculturas familiares ; como se isso fosse implícito e evidente.

A diversidade das formas de agriculturas e dos contextos torna difícil as generalizações. É evidente que conforme as situações, as agricultures familiares podem, ou não, desenvolver práticas mais ambientalmente respeitosas que as agriculturas do tipo industrial ; podem, ou não, serem mais eficientes na produção alimentar ; etc. Entretanto, os exemplos e estudos de casos que dispomos são, particularmente, úteis para identificar os elementos de contexto que oferecem condições favoráveis ao desenvolvimento das potencialidades das agriculturas familiares. Eles permitiram caracterizar de forma mais detalhada e mais holística as agriculturas familiares, os contextos nos quais evoluem e os desafios que se colocam no campo.

O exercício de comparação entre as “performances” e as capacidades das agriculturas familiares e das agriculturas industriais não é fácil. A comparação é errada na medida em que os meios que os dois tipos dispõem são desiguais. Mais fundamentalmente, vários pequenos agricultores defendem que a agricultura familiar deve ser considerada, em sua totalidade, como um pólo de vida, difícil de segmentar as dimensões, especialmente econômicas, para compará-los com a agricultura do tipo industrial. As performances desta última geral- mente são analisadas sob o único ângulo da competitividade sendo que os prismas a serem considerados para a agricultura familiar são bem mais numerosos.

Uma reflexão em andamento

Este documento constitui uma etapa na reflexão dos membros da Comissão Agricultura e Alimentação de Coordination SUD. Ele resulta da junção das reflexões próprias a cada membro e da demanda de certos parceiros no Sul de ajudá-los a embasar suas ações de advocacy.

Um seminário organizado em dezembro de 2007 pela Comissão e reagrupando atores diversos (representantes de Organizações Profissionais, ONG, da cooperação francesa, pesquisadores, etc.) permitiu a troca e o enriquecimento da reflexão da Comissão. Este documento retoma os principais comentários e conclusões deste seminário. Nós não pretendemos ter coberto, neste documento, todas as diferentes situações das agriculturas familiares nem todas as reflexões sobre este assunto. Desejamos continuar a reflexão com a participação do conjunto das pessoas referências, consultores, pesquisadores que trabalham neste domínio. Nesta perspectiva, todos os comentários são bem-vindos.

Aliás, além do “porquê” defender as agriculturas familiares, a reflexão deve ser prolongada no sentido de “como” defender estas agriculturas (quais políticas agrícolas e comerciais em diferentes escalas ? quais ferramentas de apoio, etc. ?). A conclusão deste documento sobre a importância do ambiente institucional no qual as agriculturas familiares evoluem, abre a via para esta segunda etapa da reflexão. A ligação com os documentos precedentes da Comissão Agricultura e Alimentação {>(2) 2] poderá assim ser reforçada.

Num primeiro momento nós buscamos caracterizar as agriculturas familiares a fim de especificar sobre o quê nós falamos. Apresentamos a diversidade, a complexidade de apreendê-las, mas também os traços comuns e o que pode constituir nossa visão das agriculturas familiares a serem sustentadas (1º Capítulo). Enfatizamos o paradoxo entre a importância destas agriculturas familiares, os desafios consideráveis que isto impõe em termos de desenvolvimento e de luta contra a pobreza, e o fato de que elas são abandonadas pelas políticas públicas (2º Capítulo).

Num segundo momento, apresentamos nossa argumentação em resposta à questão do porquê sustentar as agriculturas familiares. Diante dos desafios do desenvolvimento sustentável, as agriculturas familiares têm trunfos para manter empregos e administrar a transição demográfica e econômica (1º argumento) ; lutar contra a pobreza e as desigualdades (2º argumento) ; alimentar as populações (3º argumento) ; garantir a gestão sustentável dos recursos, do meio ambiente e dos territórios rurais (4º argumento).

Concluímos sobre nossa visão do desenvolvimento agrícola e da luta contra a pobreza chamando a atenção, a título de exemplo, para a experiência dos países desenvolvidos, enfatizando a importância do contexto institucional no qual se inscrevem as agriculturas familiares.

1 Uma análise mais detalhada poderia ser feita aqui para compreender o porquê do abandono do setor da agricultura e do desenvolvimento rural em geral, e das agriculturas familiares, em particular. Numa primeira análise, parece que a complexidade das dinâmicas necessitando de ações de longa duração para trazer frutos, a vulnerabilidade em termos climáticos, econômicos e políticos (as populações rurais geralmente são as primeiras vítimas) sejam elementos que levam a julgar o setor pouco portador e não necessitando de uma concentração dos esforços e da ajuda pública ao desenvolvimento (Hermelin e Fontenelle, 2007).

2 Para uma regulação eficiente dos mercados agrícolas, 2005 ; A proteção dos mercados, ferramenta de desenvolvimento, 2007.

Download the document

Top