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Written by: Sergio Leite
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Organizations: Association pour contribuer à l’Amélioration de la Gouvernance de la Terre, de l’Eau et des Ressources naturelles (AGTER)
Type of document: Paper / Document for wide distribution
As diferentes etapas
Com efeito, a elevada concentração da propriedade da terra e a necessidade de realização de uma reforma agrária são temas que permeiam o debate político brasileiro desde as primeiras décadas do século passado e que chegou a ganhar força no período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964.
Durante a ditadura, os movimentos sociais pró-reforma agrária foram duramente reprimidos. O Estatuto da Terra, de novembro de 1964, apesar de prever medidas na direção de um programa de distribuição de terras, acabou por privilegiar apenas os instrumentos de políticas voltadas à modernização tecnológica da agricultura. Somente em meados dos anos 1980, durante o processo de redemocratização do país, retorna com fôlego o tema da reforma agrária no Brasil, presente na nova estrutura administrativa do governo federal, a partir da criação do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (Mirad), que passou a encampar o Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
No início do governo Sarney (1985-1989), durante o IV Congresso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), foi anunciado o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O mesmo foi logo em seguida modificado frente as pressões recebidas do patronato rural, naquele momento fundamentado na constituição da Frente Ampla (envolvendo a Organização das Cooperativas Brasileiras - OCB; Sociedade Rural Brasileira - SRB e Confederação Nacional da Agricultura - CNA). Algum tempo depois seria criada a União Democrática Ruralista (UDR), com uma prática e um discurso mais ofensivo contra a possibilidade de implementação da reforma agrária e uma defesa explícita da violência rural, em prol da propriedade privada.
O PNRA pretendia o assentamento de 1.400.000 famílias, em 43.090.000 hectares, durante o período 1985-1989. O resultado obtido atesta um índice de 10,5% de realização das metas no total de terras arrecadadas e de 6,4% no total de famílias assentadas. Data dessa época a criação do Programa Especial de Crédito para Reforma Agrária (Procera). Ele surgia como alternativa à política tradicional de crédito rural, prevendo a realização de investimentos no assentamento e aquisição de bens necessários à manutenção da família beneficiária. Implementado de forma assistemática e descontínua até 1993, esta linha de crédito passou a ser crucial no período 1993 a 1998 para viabilizar econômica e socialmente os assentamentos de reforma agrária.
O processo constituinte (1986-1988) e a própria Carta Magna do país, pesaram desfavoravelmente com relação a reforma agrária nacional. A disputa por posições durante a Assembléia Constituinte acabou resultando num aparato legal extremamente ambíguo e bastante limitado quando comparado às legislações anteriores. Tal lacuna veio a ser parcialmente suprida com a regulamentação da Constituição Federal de 1988, por meio da mencionada Lei Agrária (em fevereiro de 1993) e a Lei do Rito Sumário (em julho de 1993), modificadas em alguns aspectos pelas Medidas Provisórias editadas entre meados de 1997 e 2004.
O governo Collor (1990-1992) foi pautado por um total desmonte do aparato público nesse e em diversos setores da estrutura administrativa. A realização de assentamentos e a arrecadação de terras praticamente limitaram-se a concluir os processos iniciados na gestão anterior. Além disso, foi lançado o Programa da Terra, tendo como um dos vértices a inclusão do Exército na tomada de decisões e aplicação de medidas no tema, bem como a criação das bolsas de arrendamento e a aquisição de terra mediante compra para fins de reforma agrária.
No governo seguinte (1993-1994), de Itamar Franco, o tema voltou a tomar maior espaço na agenda do setor público especialmente quando foi associado à questão da fome e da segurança alimentar, sendo que as medidas no setor, discutidas e operacionalizadas no Incra, passaram a ser igualmente objeto de apreciação no âmbito do Conselho de Nacional de Segurança Alimentar (Consea). Não se constituindo, num sentido estrito do termo, num plano/programa propriamente dito, o governo buscava avançar nas realizações do setor de reforma agrária e recompor parte do corpo burocrático e das ações da malha pública.
Nos governos Fernando Henrique Cardoso (FHC), cujo primeiro mandato inicia-se em 1995 e o segundo em 2002, a questão é forçosamente incorporada ao plano de ação governamental, ao mesmo tempo em que se assiste a retomada da luta por terra no país, obrigando o governo a responder de forma rápida e imediata. Além dos massacres de Corumbiara, em 1995 e Eldorado dos Carajás, em 1996, com forte repercussão internacional, o governo enfrentou manifestações de grosso calibre implementadas pelo MST, como a marcha para Brasília e os protestos contra a seca no Nordeste; e pela Contag, na ocupação de prédios públicos e na realização do “Grito da Terra”, ao mesmo tempo em que se defrontava com as manifestações dos proprietários de terras (o “caminhonaço” até Brasília, em 1995) e as negociações freqüentes com a chamada Bancada Ruralista no Congresso Nacional, em troca de apoio às propostas governamentais.
O Gráfico 1, acima, apresenta o número de famílias assentadas, durante o período de 1985 a 2006. Pode-se constatar primeiramente que o volume de beneficiários não é nada desprezível, envolvendo cerca de 950 mil famílias, o que permite registrar o acúmulo até certo ponto irreversível nessa experiência de assentamento. Descontando-se possíveis problemas de mensuração (incorporação nos dados dos processos de regularização fundiária, dados referentes à capacidade de assentamento e não ao número efetivamente assentado de famílias, incorporação em determinado ano de processos na realidade iniciados e computados em período anterior, etc.), observa-se um crescimento expressivo na média anual de assentamentos no primeiro governo FHC (1995-1998), fruto basicamente do processo de expansão das ocupações derivada da ação dos movimentos sociais rurais (Leite et al., 2004), ultrapassado em certa medida pelo primeiro governo Lula (2003-2006) [[Tanto num caso (FHC) como no outro (Lula), houve uma grande polêmica em torno dos números relativos ao total de famílias assentadas e de terras arrecadadas para a reforma agrária. Boa parte dessa discussão foi reproduzida (ou até estimulada) pela imprensa nacional, acentuando a “maquiagem” das estatísticas rurais e demandando uma transparência maior na “contabilidade agrária” da política de assentamentos rurais.]].
No início do primeiro mandato de FHC, o debate político estava centrado na política de estabilização e combate à inflação e o tema agrário parecia ter perdido seu lugar. No entanto, alguns fatos alteraram esse quadro, especialmente as ações de extrema violência policial em relação aos trabalhadores rurais e a retomada das ocupações de terra, não só pelo MST e outros movimentos de luta por terra que proliferaram em diversas regiões do país, mas também por diversos sindicatos e federações ligados à Contag. Esses acontecimentos deram novo destaque à questão agrária e levaram o governo a criar, já em 1996, o Gabinete do Ministro Extraordinário de Política Fundiária (MEPF), mais tarde transformado em Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), retirando o tema da alçada do Ministério da Agricultura, tradicional espaço de controle dos grandes empresários rurais, e subordinando-o mais diretamente à Presidência da República. Essa mudança foi a primeira sinalização de uma política governamental com o intuito de retomar a iniciativa política em relação às demandas emergentes.
Resumidamente, poderíamos dizer que essa estratégia desembocaria no redesenho da política de intervenção governamental no espaço agrário, consolidando uma opção de política pública crescentemente voltada ao que se convencionou chamar de “reforma agrária de mercado”, em detrimento da prioridade ao processo de desapropriação por interesse social, instrumento que, mesmo assim, concentrou as atenções da gestão governamental paralelamente à implantação de uma política de fortalecimento da agricultura familiar.
O redesenho da política governamental regeu-se pelos parâmetros de uma proposta de reforma do Estado, cujas diretrizes eram a descentralização de ações, o enxugamento da máquina administrativa e a privatização. Fez-se por meio da criação, por vezes sem grande alarde, de uma série de aparatos institucionais, muitos deles viabilizados por medidas provisórias, decretos ou leis complementares. No seu conjunto, elas, de um lado, agilizaram as ações fundiárias governamentais, eliminando alguns gargalos; de outro, buscaram tirar dos movimentos de luta por terra suas iniciativas. Paralelamente, iniciou-se um processo de descentralização de ações, alegando que as dimensões nacionais das metas de obtenção de terra excediam, cada dia mais, a capacidade operacional das superintendências regionais do Incra e que a complexidade do processo era incompatível com a concentração das decisões, uma vez que o assentamento se organizava fundamentalmente na sua dimensão local e regional.
Essas iniciativas governamentais, inicialmente esparsas, foram consolidadas no programa “Agricultura familiar, reforma agrária e desenvolvimento local para um novo mundo rural. Política de desenvolvimento rural com base na expansão da agricultura familiar e sua inserção no mercado” (de 1999), mais conhecido como “Novo Mundo Rural”. Com o lema “levar qualidade aos assentamentos”, a meta era tratar os assentados como agricultores familiares e traçar a programação de ação junto a eles com a participação de Conselhos Estaduais e Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável.
Diversas atividades, atribuídas até então ao Incra (topografia, demarcação de lotes, construção de infra-estrutura básica, elaboração do plano de desenvolvimento do assentamento) passaram para a responsabilidade dos assentados, por intermédio de suas associações que, para tanto, teriam direito a um recurso a fundo perdido. Fazia parte ainda da proposta a emancipação rápida dos assentamentos. O assentado passava a ser visto como um “empreendedor” que deveria se ajustar ao mundo dos negócios e nele se mostrar competitivo. Argumentando que o processo de reforma agrária em curso no Brasil tinha porta de entrada mas não de saída, e que os agricultores precisavam deixar de estar sob a tutela do Estado e entrar plenamente no universo contratual, o programa impunha, após um curto período inicial de consolidação, o mercado como regulador maior das atividades desse contingente recém-chegado à terra.
Políticas de crédito fundiário
Como nos mostra a socióloga Leonilde Medeiros, como parte da nova compreensão da reforma agrária, iniciaram-se no Brasil experiências nos moldes das reformas agrárias “conduzidas pelo mercado” implementadas com apoio do Banco Mundial, ao longo dos anos 1990, em países tais como Filipinas, África do Sul e Colômbia. No caso brasileiro, a primeira dessas experiências deu-se a partir de um projeto piloto no Ceará, em 1996. Em 1997, o programa passou a ser desenvolvido nos estados do Maranhão, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e no próprio Ceará, com o nome de Cédula da Terra (PCT).
A partir da suposição de uma queda dos preços da terra e, conseqüentemente, da existência de uma oferta desse ativo, além da constatação de que “a espinha dorsal do latifúndio fora quebrada” conforme reiteradas declarações do Ministro da Política Fundiária, a opção do governo orientou-se pelo estímulo à obtenção de terras no mercado. Além da hipótese de encontrar preços mais baixos, haveria aí um ganho político, por se privilegiar a negociação e não o confronto. Em que pese a afirmação recorrente, nos documentos governamentais, de que a desapropriação continuaria sendo o instrumento fundamental de acesso à terra, toda a argumentação neles presente mostrava que havia desvantagens da desapropriação em relação às formas negociadas de obtenção de terras (em especial os altos preços, os entraves judiciais e a conflitividade inerente à desapropriação).
A princípio, o programa de estímulo ao acesso à terra via mercado foi implementado sem provocar maiores debates políticos, apesar de sua ampla divulgação no plano local. As entidades patronais prontamente apoiaram a política. No entanto, na medida em que o mesmo se consolidava as reações se iniciaram, tendo como principais porta-vozes o MST, a Contag, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo. A Contag, desde logo, reiterou a defesa da desapropriação por interesse social, aceitando, no entanto, como mecanismo de acesso à terra, complementar à desapropriação, um programa de reordenamento fundiário, para o qual não poderiam ser utilizadas áreas passíveis de desapropriação (Medeiros, 2002). Isso implicou na passagem do PCT (e de seu sucessor, o Banco da Terra) para o Programa de Crédito Fundiário contra a Pobreza Rural.
Política de assentamentos rurais
Durante o governo FHC houve um crescimento acentuado de conflitos de terras no país, com destaque para o processo de ocupação de áreas como forma de pressão para desapropriação de imóveis rurais que não cumpriam sua função social, tal como previsto pela Constituição Federal, aspecto já apontado no primeiro capítulo. Tais ocupações se deram, especialmente, entre os anos de 1996 e 1999, como pode ser visualizado na Tabela 1 e no Gráfico 2, a seguir. Esse movimento é retomado no Governo Lula, como veremos logo adiante. Por ora vale registrar o número não desprezível de famílias que estiveram envolvidas nas ocupações nos anos recentes (acima de 50 mil famílias por ano, com exceção dos anos de 2001, 2002 e 2006). Cerca de 40% das ocupações verificadas no país ocorreram na região nordestina (com exceção dos anos de 1999 e 2001, que registraram pouco mais de 30%, e de 2000, com mais de 50%), que chegou a congregar praticamente metade das famílias envolvidas no total de ocupações do país em 2000. Fato que aponta para um forte processo de luta por terra nessa região, que apresenta, ainda, um índice elevado de concentração fundiária. O estado de Pernambuco é, segundo a CPT, aquele com o maior índice de conflitividade e atesta a presença de mais de 16 movimentos de luta por terra. Pesquisa realizada por Leite e outros (2004), que levantou dados sobre uma amostra de 49 projetos de assentamento em 23 municípios de 5 estados nordestinos, concluiu que quase a totalidade dos projetos resultou de algum tipo de conflito (ocupação, resistência na terra, etc.), deixando a ação pública à reboque da ação dos movimentos sociais. Em algumas áreas, como mostra a pesquisa, houve uma concentração de projetos e um adensamento de famílias, revelando a formação de “manchas” de áreas reformadas, como aquela observada na Zona Canavieira Nordestina, abarcando o norte de Alagoas, Mata Sul e Mata Norte de Pernambuco e o sul e o brejo paraibano. Ainda que construídas ad-hoc, tais manchas indicam claramente a possibilidade de redinamização (econômica, política e social) a partir da existência dos assentamentos.
Ano | Ocupações | Famílias |
1996 | 398 | 63.080 |
1997 | 463 | 58.266 |
1998 | 599 | 76.482 |
1999 | 593 | 77.612 |
2000 | 390 | 64.497 |
2001 | 194 | 36.431 |
2002 | 184 | 37.708 |
2003 | 391 | 124.634 |
2004 | 496 | 73.657 |
2005 | 437 | 54.427 |
2006 | 384 | 44.364 |
Fonte : Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo – Brasil 2006.
A política agrária do governo Lula e o II Plano Nacional de Reforma Agrária
O presidente Lula assume o governo, tendo a Reforma Agrária com um dos compromissos de campanha, com duas promessas: de massificar o assentamento de famílias e levar qualidade aos projetos de reforma agrária, complementando a infra-estrutura (e mesmo a assistência técnica) naqueles já implantados.
No entanto, apesar dos dados mostrarem um aumento no número de famílias assentadas (ressalvadas as controvérsias já assinaladas), pode-se constatar a manutenção de algumas características que marcaram as gestões anteriores, como a forte concentração dos projetos de assentamentos criados na Região Norte do país (cerca de 46% em 2005 segundo Oliveira, 2006), ainda que nesta região a regularização fundiária atinja um segmento de “grileiros” baseados em grandes propriedades.
Uma “novidade” do governo Lula foi o lançamento, em novembro de 2003, do II Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), o que, em princípio, poderia indicar um maior compromisso governamental com o tema. No entanto, a análise de suas propostas e metas aponta novamente para mais continuidades do que descontinuidades em relação ao governo anterior, ou seja, o Plano não rompe com as políticas anteriores, embora tenha proposto o assentamento de um número de famílias maior do que aquele realizado no governo FHC. Talvez a diferença mais sensível residisse na proposta de atuar a partir de áreas reformadas (que acabaram não “vingando”) bem como no fortalecimento das condições de infra-estrutura dos projetos. As metas do II PNRA eram:
400 mil novas famílias assentadas até 2006, sendo 30 mil em 2003, 115 mil em 2004, 115 mil em 2005 e 140 mil em 2006.
500 mil famílias com posses regularizadas até o final de 2006, com título definitivo da terra;
130 mil famílias com acesso à terra por meio do Crédito Fundiário, programa que substitui o antigo Banco da Terra: 17,5 mil até o final de 2003 e outras 37,5 mil, por ano, até 2006;
a recuperação da capacidade produtiva e a viabilidade econômica dos atuais assentamentos, bem como a universalização do direito à educação, à cultura e à seguridade social.
reconhecimento, demarcação e titulação de áreas de comunidades quilombolas;
a garantia de reassentamento dos ocupantes não-índios de áreas indígenas;
a promoção da igualdade de gênero na reforma agrária, com o apoio a projetos produtivos protagonizados por mulheres;
a garantia de assistência técnica e extensão rural, capacitação, crédito e políticas de comercialização a todas as famílias das áreas reformadas;
Embora as metas em termos de famílias assentadas tenham sido modestas (400 mil) em relação ao quadro geral de potenciais demandantes e àquelas contidas no anteprojeto de plano encomendado à época (um milhão de famílias), mesmo assim não foram integralmente cumpridas, como vimos acima. Uma das críticas dirigidas às mesmas centrou-se no fato de que sob a rubrica “assentamentos rurais” computou-se o assentamento de famílias em terras desapropriadas, em terras públicas (federais, estaduais e municipais), além de envolver processos de reordenamento e de regularização fundiária. Podemos supor que, talvez, o recurso ao uso de terras públicas não estivesse nas intenções iniciais do governo. Mas, diante das dificuldades administrativas e, particularmente jurídicas, de operacionalizar o processo de desapropriação, acabou-se recorrendo a esse instrumento numa proporção acima da desejável. Não foram feitas propostas de alteração na legislação de reforma agrária em vigor, nem mesmo no que se refere à proibição da desapropriação de terras ocupadas e modificação nos índices de produtividade que informam se os imóveis rurais brasileiros são ou não passíveis de desapropriação. Os índices utilizados hoje são os mesmos de 1975. No entanto, avanços foram observados na dotação de recursos para gastos com a função orçamentária do setor agrário (particularmente na arrecadação de terras), no reconhecimento de populações nativas e comunidades tradicionais (quilombos, fundos de pasto, ribeirinhos, etc.), além dos instrumentos relativos às demandas dos movimentos de mulheres. Assim, no que se refere à questão de gênero, um avanço a ser registrado foi a aprovação da obrigatoriedade de emissão do título do lote em nome do casal. Outro ponto importante é a proposta de acabar com a idéia de um modelo único de assentamento em todo o país, associada no PNRA com a incorporação do “conceito de desenvolvimento territorial” na reforma agrária. No entanto, uma política mais efetiva de desenvolvimento dessas áreas reformadas ainda não foi objeto de um tratamento mais exaustivo pelo governo, como ressaltou a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA).
Para a regularização das posses, o II PNRA propôs o cadastramento georeferenciado do território nacional, considerando que o programa contribuiria na identificação de áreas que o Sistema Nacional de Cadastro dos Imóveis Rurais desconhece atualmente. O objetivo seria o de “criar uma estabilidade jurídica da estrutura fundiária brasileira, capaz de superar um conjunto de conflitos fruto de ocupações irregulares como a grilagem” (MDA, 2003). Embora a regularização não possa ser considerada como reforma agrária, pode ter um impacto importante em diversas áreas, como por exemplo nas novas fronteiras agrícolas dos cerrados, mas provavelmente também em diversas áreas da caatinga (onde muitos agricultores familiares provavelmente não têm o documento da terra regularizado), do litoral (onde o avanço do turismo tende a estimular a especulação imobiliária e expulsar as populações litorâneas, incluindo pescadores artesanais que em parte também são agricultores familiares) e na região Amazônia.
Com relação ao crédito fundiário, a grande maioria dos setores ligados à luta pela reforma agrária avaliou de forma bastante negativa as elevadas metas incluídas no plano (especialmente em termos proporcionais à meta de assentamentos propriamente ditos), vendo nisso uma continuidade em relação ao governo anterior e aos programas do Banco Mundial que pregam a chamada “reforma agrária de mercado”, e que vem sendo criticada inclusive pela FAO. Este programa de crédito para compra de terras tem sido aplicado principalmente por intermédio dos governos estaduais. Mesmo assim, foram beneficiadas cerca de 35.500 famílias, segundo dados oficiais, número muito abaixo da meta estipulada de 130 mil famílias.
Propostas à parte, e apesar de haver unanimidade em considerar que há por parte do governo Lula um maior compromisso com a reforma agrária do que os governos anteriores, as limitações na legislação podem ser apontadas como problema a ser considerado nessa performance. Apenas em 2004 o governo Lula tomou iniciativa neste sentido, buscando introduzir, por meio de medida provisória, alguns dispositivos que talvez acelerem o processo de arrecadação de terras. Essas iniciativas tornam-se importantes na medida em que todas as afirmações oficiais indicam que o governo fará o processo de reforma agrária “dentro da lei”. Mas, mesmo nesse campo, há um grande caminho a percorrer no aprimoramento de tais dispositivos, como sugere o debate em torno dos índices de produtividade, da política de crédito aos assentamentos, na fiscalização das relações de trabalho nas áreas de empresas agropecuárias, na condenação da prática de trabalho escravo, etc.
No âmbito da sociedade civil, os principais atores que tem impulsionado a reforma agrária brasileira são os movimentos sociais, especialmente MST e Contag (com alcance nacional), mas há também um grande número de movimentos pela terra que vêm surgindo a partir de dissidências com MST e Movimento Sindical, ou mesmo ligados a partidos políticos, e que têm dificuldade de diálogo entre si, abrindo um campo de disputas em torno do problema fundiário. As ocupações de terra (e também as ocupações de órgãos públicos e empresas) têm se constituído nos principais instrumentos de pressão, utilizados por diferentes organizações, embora com diferenças nas estratégias adotadas. Outro ator importante é a CPT, uma das principais referências no que se refere ao combate à violência no campo, mas também em alguns estados ativa nas ocupações de terra.